Um vira-lata numa tarde triste
Naquela tarde, eu estava triste e andava sem rumo pela praça. Tudo parecia triste para mim. As vitrines estavam sem brilho e nenhum dos apelos da publicidade me afetavam. Havia na praça alguns bancos. Sentei-me em um deles e fiquei olhando o tumulto do fim da tarde. Algumas pessoas iam apressadas, outras andavam devagar, outras ainda pareciam tão tristes quanto eu e estavam também sentadas nos bancos. Todos estavam prestando atenção em si mesmos. Um casal passou por mim, em silêncio. Um homem falava baixinho, consigo mesmo.
Algumas luzes começavam a ser acesas. Era o início da noite. Todos iam para algum lugar. Só eu estava ali, sem rumo e sem vontade de voltar.
Então, um desses cães vadios, da rua, veio se aproximando do banco em que eu estava. Não estava apressado. Andava apenas. Logo que me viu, parece que tomou a decisão de vir ao meu encontro. Ele mudou de direção. Não abanou o rabo e nem se mostrou feliz em se aproximar de mim. Veio se aproximando devagar, como que pedindo licença. Quando estava bem perto, olhou-me sem censura e sem compaixão. Olhou ao redor, voltou a olhar para mim e em seguida deitou-se perto dos meus pés. Pousou a cabeça entre as patas dianteiras e ficou ali, olhando para mim. Eu pensei: Não tenho nada para lhe dar. Ele permanecia, ali, olhando para mim. Mudei a posição dos pés. Ele levantou a cabeça e se preparou para sair dali. Porém, como só mudei a posição dos pés, ele se ajeitou melhor e continuou deitado me olhando. De vez em quando, ele levantava a cabeça e olhava alguma coisa ao longe. Sempre que fazia isso, levantava as orelhas, procurando escutar melhor. Depois me olhava e se deitava.
Fiquei reparando aquela figura na minha frente. Tratava-se de um vira-latas, com certeza, embora não entenda nada de cães. Não era de todo magro, embora seu porte indicasse uma vida difícil. Não era um belo exemplar da espécie, mas não era feio. Tinha o pêlo sujo mas não despertava nojo. Olhando aquele cão, fiquei imaginado as dificuldades que ele deveria encontrar para sobreviver. Era da rua e, portanto, não tinha dono. Era um cão livre, mas isso tinha um preço. Não tinha almoço ou jantar certos, nem banhos, nem escovação de pêlos, vacinas, ou seja, tudo que parece fazer um cãozinho com dono feliz.
Ele parecia entender o que eu estava pensando. De repente, ele se levantou, espreguiçou-se, abriu a boca, chegou mais perto de mim e cheirou meu sapato, depois a bainha de minha calça. Resolveu deitar-se bem perto de mim.
Notei que agora fechara os olhos e parecia dormir. Fiquei ali velando seu sono e me sentindo responsável por sua tranqüilidade. Voltei a olhar para a praça e agora tudo parecia mais calmo. Poucas pessoas andavam por ali. As luzes estavam mais brilhantes. Era noite completa.
Os ruídos, à noite, são diferentes dos ruídos do dia. A noite amplifica qualquer barulho. E foi assim que fiquei vigiando os ruídos da praça, para que nada incomodasse o sono daquele cão que eu não conhecia e que dormia aos meus pés. Ele parecia dormir placidamente. Fiquei imaginado que sonhos ele teria... Um homem se aproximou de mim e me perguntou as horas. Respondi e ele me perguntou se aquele cãozinho era meu. Disse que não. O homem olhou para o cão e depois para mim. Ia dizer mais alguma coisa, mas desistiu e foi embora.
Voltei a olhar para aquele cãozinho deitado aos meus pés. Ele viera, não sei de onde, me fazer companhia. Ele me acolheu e me aceitou, com minha tristeza. Não disse nada, nada pediu. Apenas me aceitou. Fiquei um longo tempo olhando para ele.
Mais tarde, ele se levantou. Olhou-me também longamente. Depois se foi, devagar, mas sem olhar para trás. Fiquei novamente sozinho e triste.
Nunca mais voltei a ver esse cão, embora tenha voltado muitas vezes à praça. Naquela noite, pensei em levá-lo comigo, dar-lhe abrigo e comida. Porém, sua determinação, na hora de partir, deixou-me desconcertado. Ele nada queria de mim. Ele não veio a mim para negociar afeto ou carinho ou comida. Ele apenas me fez companhia, numa hora triste.
Sentado naquele banco, posso sentir sua respiração e ver aquele olhar terno, que nada pede. Apenas olha.
A praça agora não é mais triste, pois nela há um banco onde um certo cãozinho me ensinou que a amizade não é comércio de coisas ou de afeto. A amizade é apenas um encontro, sem nada pedir, é apenas um certo jeito de olhar.
Geraldo Carozzi - jornalista
Adorei esse texto. Ele caiu na minha prova de português. Muito lindo!!!
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