segunda-feira, 25 de maio de 2009

Quando a noite cai e as sombras, misericordiosamente, cobrem a nudez das coisas, o mundo se transforma e o que era não é mais e o que não é ainda, vem a ser. Há algo extremamente misterioso na economia da luz. Quando ela brilha, o mundo parece-nos seguro, belo, maravilhoso, alto, transcendente, sublime. A mesma paisagem, quando as sombras cobrem a terra, torna-se perigosa, soturna, cheia de segredos e sortilégios. A noite tem olhos grandes, de longo alcance, a despeito da penetrabilidade da luz. Quando esta ilumina o mundo, o conforto daí advindo sugere o descanso, o repouso. É quando o predador vai dormir. A noite desperta o instinto e convida para a caça.
A noite não revela facilmente. Ela esconde as coisas, só as revelando àquele que presta atenção, que procura, que zela por encontrar. A noite esconde a violência da caça e também a volúpia do festim. O dia revela prontamente os restos do banquete noturno, as marcas da violência e a solidão que sempre resta de tudo que não é mais.
Normalmente, quando o dia desperta, são os urubus que chegam para o trabalho de cata dos restos. Quando tudo fica limpo, os urubus voltam para a imensidão azul e, em círculos escuros, parecem convidar as sombras para a execução de mais um ciclo, de mais um não mais e um não ainda.
Naquele dia, o sol queimava, sem piedade aparente, o chão seco e poeirento da estrada. Milhares de insetos cantavam, zuniam, por entre a vegetação cinza dos pastos. Arbustos encardidos e retorcidos se espalhavam pela paisagem, como se fossem marcas divisórias de uma improvável propriedade. Ao longe, alguns bois tentavam arrancar do chão os restos do capim calcinado pelo sol. De vez em quando, ouvia-se pela imensidão do ar o grito sombrio do gavião, anunciando a sua perigosa presença pelas redondezas.
Ele avançava qual um fantasma pela estrada. A secura do ar tornava sua respiração custosa. Seus lábios estavam pesados e pastosos. Só ele dava sinais de cansaço; a estrada parecia animada por um desejo de infinitude; não queria acabar jamais. Ele suava, mas o suor logo evaporava, como se a Natureza estivesse avara de qualquer tipo de umidade. Seus pés doíam no cascalho duro do chão. Aproximou-se de uma curva mais fechada. Talvez, logo depois da curva, houvesse uma casa ou um galpão ou mesmo apenas uma árvore frondosa, que propiciasse alívio, com sua sombra, para o calor exasperante do sol. Apressou o passo, apesar do sacrifício que isso lhe custava. No entanto, a curva apenas revelou uma longa reta que parecia ir a lugar nenhum. Ele, então, parou, desanimado. Olhou para trás. Voltou a olhar para a reta. Bem lá na frente, divisou algo se movimentando na estrada. Era um ponto que se mexia e vinha na sua direção. Percebeu logo que não se tratava de uma pessoa. Também não se tratava de um boi. Era uma animal pequeno, talvez uma raposa ou um cão. Lembrou-se que naquela época de calor escaldante era comum o viajante se encontrar com cães perdidos pelas estradas. Ele resolveu sentar-se em uma pedra à beira da estrada e ficar à espera do misterioso peregrino. No céu, alguns urubus voavam em longos e altos círculos. Mexeu em seus pertences e encontrou um pedaço de pão. Partiu-o ao meio e começou a mastigar o seu pedaço. O outro, ele reservou para o seu suposto companheiro de sina. Olhou para a estrada e a mancha escura ainda se aproximava, lentamente. De vez em quando ela parava. Depois, com resignação, continuava sua marcha inexorável.
Ele ficou observando o chão calcinado ao seu redor. Chamou-lhe a atenção uma fileira de formigas, que indiferentes ao calor sufocante, executavam a sua faina diária de coleta de folhas. Os pedaços de folhas que carregavam era de um verde vivo e ele ficou considerando o trabalho imenso que aquelas formigas tiveram para encontrar aquelas preciosidades em meio àquela secura geral. A fileira de formigas perdia-se no emaranhado de raízes e folhas secas do chão. Elas iam e vinham. Às vezes paravam e trocavam contatos com suas antenas, como se umas beijassem as outras. Em seguida, como se tivessem encontrado informações preciosas, seguiam seu caminho, com incomum determinação. Para aqueles pequenos seres, o calor do sol pouco importava. Ele desejou, naquela hora, ser uma formiga. Então, ele levantou a cabeça e levou um susto: um cão enorme, preto, peludo, olhava fixamente para ele, com a língua pendendo da boca cansada e seca. Ele ficou sem ação. Aos poucos, porém, recobrou a calma. Ofereceu o pedaço de pão ao cão. Este, faminto, comeu o pão com a rapidez da gula. Depois a noite cobriu a estrada, o cão e ele mesmo.

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