Há algo de obscuro no fazer cotidiano de todos os homens. Maltratar um menino feio e tímido... Rir do aleijão alheio... Fazer gozação do tombo do outro.
Havia um homem que todos os dias fechava o pequeno portão de entrada de sua casa. E todos os dias alguém passava por ali e jogava o portão no chão. Mas todos os dias o homem fechava o portão. Antes, todos os dias, ele tinha de pegar o portão no chão, erguê-lo e colocá-lo no lugar. Dava trabalho, mas ao ver o pequeno portão no lugar, ele se sentia vingado e sereno. Foi assim durante anos. Mas sempre tem um dia que a rotina chega a um limite. O homem acordou com o barulho do portão ser jogado ao chão. Ele pensou: Nossa, não estão nem esperando mais eu sair de casa. Nesse dia ele ficou em casa. Nem se levantou. À tardinha, ergueu o pequeno portão e o colocou no lugar. Sentou-se ao lado do portão e se encostou no muro. Dormiu ali. Ou então, passou a noite acordado ali. De manhã, passou pela rua um rapaz assobiando. Parou em frente ao portão. Ficou ali um tempo e seguiu seu caminho. Meia hora depois, um vulto se aproximou do portão. Agarrou-o e jogou-o ao chão, com um estrondo. O homem se levantou e olhou para o vulto que hesitava entre correr e ficar ali, com ar de estúpido. Então ele reconheceu o seu vizinho de anos a fio. O homem estava com um revólver no bolso. Ele pegou o revólver. Olhou para o seu vizinho, estúpido, que mais parecia um rato que uma pessoa. Ele apontou a arma para o seu vizinho, que começou a tremer. Ele disse ao vizinho: Pegue o portão. O vizinho pegou. O homem disse: Agora ande e não olhe para trás. O vizinho bufava e seus passos faziam um barulho enorme no cascalho da rua. Os dois foram andando para a praia. Ao pisar na água, o vizinho balbuciou: Aqui tá bom? O homem levantou a voz: Não olhe para trás. Continue andando.
Os dois nunca mais foram vistos.
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